Já posso falar?
Não me lembro de quando nasceram os meus irmãos, de festas de anos ou dos professores da escola. Não me recordo das roupas que usava, daquilo com que brincava nem da casa onde vivia.
Sei que, quando o meu filho me disse que gostava do Volkswagen, senti um frio na barriga e uma grande agonia.
Sei que, quando leio coisas sem nexo, me sinto contente por as pessoas se puderem expressar, da forma que querem, mesmo quando falam de coisas que não sabem.
As minhas memórias são de um tempo em que as pessoas não se podiam juntar para conversar porque eram presas. Quando eu tinha 4 anos o meu pai estudava engenheira em Coimbra. Imagino que, por o meu irmão ter poucos meses de diferença de mim, eu andava com o meu pai para todo o lado enquanto o bebé ficava em casa com a minha mãe. Foi por isso que vi indivíduos bem vestidos, no cimo dos seus sapatos bem engraxados, fazerem correr o meu pai comigo ao colo como um louco. Ele estava a conversar com os colegas da faculdade, depois de terem acabado de fazer um trabalho, mas isso era proibido. Sim, era proibido o direito de reunião! E, três alunos universitários a conversar era considerado uma reunião… Eu lembro-me de estar enrolada na capa preta sem respirar e aos tropeções.
Lembro-me de estar em cima da mesa a dizer umas rimas, que mais tarde vim a saber serem as quadras do Aleixo, e ser fortemente advertida de que não as podia repetir em circunstância alguma. Só podiam ser ditas em casa e a falar baixinho como se viesse o papão e me levasse.
Lembro-me de, durante muito tempo, o meu pai me dizer que eu tinha de fazer de conta que não falava: “Tu não falas, Paulinha. Se alguém parar para falar connosco tu não podes dizer nada. Tens de fazer de conta que és muda!”
E, ao final da tarde, nos dias escuros de inverno, quando caminhávamos da escola para casa, o caminho parecia nunca acabar. Primeiro ouvia-se o característico roncar do motor do Volkswagen e o meu dizia-me para continuar a caminhar direita e sem olhar. Fazia o habitual alerta que, se o carro parasse, eu era muda. Depois, viam-se as luzes dos faróis, e ouvia-se o carro a aproximar-se lentamente. O meu pai repetia o aviso. O carro nunca mais passava e aqueles minutos pareciam horas. O meu pai repetia a lengalenga habitual: “tu não falas, tu não falas, tu não falas filhinha…”
Uns dias o carro passava e ficávamos a vê-lo afastar-se, com o coração a bater na garganta, e eu sentia-me a sufocar. Outros, o carro parava. Eram os dias em que chegava a casa com as calças molhadas.
Lembro-me de estar doente e a minha mãe suplicar por dinheiro aos meus avós para eu ser operado na Clínica de Santa Filomena. Ser mãe de uma criança de 4 anos, aos 21 anos, não era fácil; e deixar uma simples operação à apêndice ser feita no hospital publico, era uma irresponsabilidade.
As minhas memórias recordam pobrezinhos nas ruas e nobres senhoras que lhes atiravam uma moeda caridosamente. Quando eu ia ter com a minha avó, à porta da Igreja Santa Cruz, era fácil perceber que cada senhora tinha o seu pobre que generosamente alimentava. Hoje, até os animais de estimação são tratados com mais respeito.
Lembro-me do lápis azul, dos livros que não se podiam ler, dos filmes proibidos e das conversas sussurradas dos meus pais com os vizinhos.
Mas, o que mais me custava, era não me deixarem falar e estarem sempre a dizer que não podia dizer isto ou aquilo.
Naquele tempo, íamos a pé para a escola, sozinhos, o que já era bem melhor que a geração anterior. A minha sogra, com cinco anos de idade, trabalhava acartando bacias de carne do matadouro para o talho. Bacias que, por vezes, a esmagavam contra o chão e, outras vezes, a faziam desmaiar.
Um dia, estava na escola, e a professora mandou-nos para casa. Cheguei a casa, muito aborrecida, porque adorava brincar com os meus amigos. A minha mãe veio buscar-me às escadas e perguntou-me o que tinha. Lá lhe expliquei porque estava triste. A minha mãe retorquiu que me ia contar uma coisa que me ia deixar muito feliz. No alto dos meus sete anos perguntei: “já posso falar?”
A minha mãe abraçou-me e disse: “A partir de agora, vais poder dizer sempre o que tu quiseres!”
São estas as minhas memórias da infância.
Só muito mais tarde percebi que a isto se chamava Liberdade de Expressão.
Mais tarde compreendi o que era o direito à saúde, à educação e à justiça.
Percebi a diferença entre caridade e solidariedade.
Compreendi que, se reivindicarmos igualdade de direitos, contribuímos para a construção de um mundo melhor.
Eu tenho estado sempre comprometida com o meu crescimento e da sociedade em que estou inserida.
É, por tudo isto, que eu comemoro o 25 de Abril!